Desde antes de sua entrada em vigor, o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) já encontrava grande resistência de parcela considerável e fundamental de seus destinatários, especialmente dos magistrados. Não foram poucos os fóruns, seminários, encontros, congressos, entre outros eventos promovidos pelas entidades representativas da classe e até mesmo pelos próprios órgãos do Poder Judiciário. Os resultados foram igualmente volumosos e, a seu respeito, indico fortemente a leitura da série de artigos publicados por Lenio Luiz Streck no site Conjur: texto 1, texto 2 e texto 3.
As mudanças que efetivamente representavam inovações eram, em sua grande maioria, combatidas pela classe. Às vezes penso, com o devido respeito à classe e com arrimo na liberdade de cátedra, que se a magistratura pode ser considerada a mãe do recém-nascido Código de Processo Civil, então está caracterizado o infanticídio. Isolem a área e convoquem os peritos!...
Chega a impressionar os esforços e contorcionismos interpretativos empreendidos na tentativa de negar aplicabilidade às diversas inovações do CPC/2015. E o mais lastimável é que tal resistência ao novo vem precisamente daquele setor que, muito pelo contrário, deveria ser o recanto, a garantia orgânica de que os dispositivos legais, sem que tenham sido reconhecidos como inconstitucionais, sejam aplicados.
Dentre tantos pontos controvertidos, alguns deles ocupam posição central no debate. O tema aqui tratado é precisamente um deles: a nova sistemática de contagem de prazos processuais instituída pelo art. 219 do CPC/2015 e sua (in)aplicabilidade ao Sistema dos Juizados Especiais.
A simples leitura das leis que disciplinam o Sistema dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/1995; Lei nº 10.259/2001; e Lei nº 12.153/2009) conduz a uma única e irrefutável conclusão: nenhuma delas traz qualquer dispositivo sobre a contagem dos prazos processuais. Pode até haver outras controvérsias, mas tal questão é incontestável.
Esgotada a procura por regra que preencha a referida lacuna normativa no âmbito do próprio Sistema dos Juizados Especiais, tratando-se de normas processuais, a consequência lógica (e indicada pela própria Lei nº 13.105/2015) é buscar na lei processual geral (Código de Processo Civil), o preenchimento dessa lacuna. Tal entendimento, cuja obviedade salta aos olhos, é ainda reforçado pela expressa disposição do art. 1.046, § 2º, do CPC/2015, que estabelece:
Art. 1.046. (...).
§ 1º (...).
§ 2º Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código.
(...).
Tem-se, pois, que a novel legislação processual conservou a autonomia normativa dos procedimentos especiais e estabeleceu a aplicação supletiva, a estes, das normas gerais previstas no novo Código de Processo Civil.
Seguindo essa mesma lógica interpretativa, durante o XIII Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais, em abril de 2016, foi editado o enunciado nº 175, estabelecendo o seguinte:
Enunciado nº 175
Por falta de previsão legal específica nas leis que tratam dos juizados especiais, aplica-se, nestes, a previsão da contagem dos prazos em dias úteis (CPC/2015, art. 219) (Aprovado no XIII FONAJEF).
Pois bem, contrariando a lógica jurídica mais simplória e negando vigência ao próprio CPC/2015, no dia 04 de março de 2016, o Fórum Nacional de Juizados Especiais (FONAJE) emitiu a Nota Técnica nº 01/2016, que se inicia com os seguintes dizeres:
Ref.: Artigo 219 do Código de Processo Civil de 2015, que trata da contagem de prazos processuais em dias úteis.Os Magistrados integrantes da Diretoria e Comissões do FONAJE – Fórum Nacional de Juizados Especiais, reunidos ordinariamente, nas dependências do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, na cidade de Florianópolis, em data de 04 de março de 2016, convictos de que as disposições do artigo 219 do Novo CPC, relativas à contagem de prazos processuais, não se aplicam ao Sistema de Juizados Especiais, deliberaram por elaborar e divulgar a presente Nota Técnica, já como indicativo de proposta de enunciado específico a ser apreciada por ocasião do XXXIX Encontro do FONAJE, a ter lugar em Maceió-AL, de 08 a 10 de junho de 2016, dada a flagrante incompatibilidade com os critérios informadores da Lei 9.099/1995.
A íntegra dessa nota pode ser acessada aqui.
E não para por aí. Durante do XXXIX Encontro do FONAJE, foi publicada a Carta de Maceió (leia a íntegra aqui), nestes termos:
Os magistrados dos Juizados Especiais do Brasil, reunidos no XXXIX Encontro do Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE, nos dias 8, 9 e 10 de junho de 2016, em Maceió, capital do Estado de Alagoas, sob o tema 'A Autonomia dos Juizados Especiais', vêm a público para:
1. Reafirmar a necessidade de preservação da autonomia e da independência do Sistema de Juizados Especiais em relação a institutos e a procedimentos incompatíveis com os critérios informadores definidos no art. 2º da Lei 9.099/95, notadamente os previstos no Novo Código de Processo Civil; e ressaltar que, por suas peculiaridades, os Juizados Especiais, órgãos constitucionais (art. 98, inc. I, da CF/88), são vocacionados a contribuir positiva e decisivamente para a redução dos índices de congestionamento processual da Justiça Brasileira;
2. Relembrar que, ao longo dos 20 anos de vigência da Lei 9.099/95, os Juizados Especiais Criminais vêm se constituindo em meio adequado ao atendimento das políticas públicas de redução da criminalidade de baixo potencial ofensivo;
3. Concluir que o julgamento por equidade estabelecido no art. 6º da Lei 9.099/95 constitui imprescindível mecanismo de solução de lides, absolutamente necessário à eficiência do Sistema dos Juizados Especiais; e advertir que qualquer medida que vise à sua restrição inexoravelmente comprometerá a essência do Sistema;
4. Alertar para os graves riscos a que está submetida a eficácia do funcionamento dos Juizados Especiais Fazendários, em face da ampliação de sua competência; e reconhecer a necessidade de serem aplicados com maior rigor os critérios legais restritivos desta competência diante de ações de maior complexidade;
5. Manifestar expressa contrariedade ao Projeto de Emenda Constitucional 389/2014 (que trata do ‘quinto constitucional dos advogados’) ante a manifesta inviabilidade de criação dos referidos cargos à luz da estrutura administrativa dos órgãos judiciários - a significar, na prática, o restabelecimento dos extintos 'juízes classistas';
6. Posicionar-se, pontual e objetivamente, pela revisão e pelo aprimoramento da Resolução 3/2016 do Superior Tribunal de Justiça, que atribui aos Tribunais de Justiça a competência para apreciar Reclamação afeta aos Juizados Especiais, tendo em conta a incompatibilidade com as disposições previstas no artigo 18 da Lei 12.153/2009. Maceió, 10 de junho de 2016.
E para arrematar, ainda foram editados os enunciados nº 165, referente aos Juizados Especiais Cíveis, e nº 13, relativo aos Juizados Especiais da Fazenda Pública (disponíveis aqui), segundo os quais:
Embora as conclusões e enunciados divulgados durante os encontros do FONAJEF e do FONAJE tenham força meramente persuasiva, não obrigando ou vinculando quem quer que seja, inclusive e especialmente os magistrados, alguém duvida da sua massiva aplicação prática, em especial as orientações traçadas pelo FONAJE? Eu, não!ENUNCIADO 165 - Nos Juizados Especiais Cíveis, todos os prazos serão contados de forma contínua (XXXIX Encontro - Maceió-AL).
ENUNCIADO 13 - A contagem dos prazos processuais nos Juizados da Fazenda Pública será feita de forma contínua, observando-se, inclusive, a regra especial de que não há prazo diferenciado para a Fazenda Pública - art. 7º da Lei 12.153/09 (XXXIX Encontro - Maceió-AL).
Vivemos tempos de constantes e crescentes incertezas jurídicas devido aos também crescentes fenômenos da jurisprudência defensiva (ou seria ofensiva?) e do que chamo de judicionismo de emergência ou utilitarista. Tempos em que notas técnicas, cartas e enunciados editados por ocasião de encontros restritos em que participam autoridades gestoras de sistemas judiciários se sobrepõem às próprias leis, com o objetivo primordial - embora não declarado - de esvaziar as prateleiras dos fóruns e, também agora com a tramitação eletrônica de procedimentos, liberar espaço nos servidores do Judiciário.
Mas afinal: manda quem pode e obedece quem tem juízo, não é mesmo?! Bom... não pode ser! Enquanto houver doutrina, haverá esperança! Enquanto houver Processualistas - e não procedimentalistas-utilitaristas - haverá esperança! Este é o momento do Direito Processual, enquanto ciência, reagir por meio da doutrina e das autoridades que o sustentam: a teórica e epistemológica.
A confusão gerada entre Direito Processual, Processo e Administração Judiciária pode até conduzir a soluções imediatistas -utilitaristas para o grande problema do Judiciário brasileiro. Mas a falácia retórica não resiste a um simples teste, que invariavelmente aponta o mesmo diagnóstico: gestão deficiente e ineficiente é igual a prestação jurisdicional de baixa qualidade. Seria, inclusive, bastante oportuno promover o diálogo das fontes e com isso aposentar a famigerada celeridade e trazer também para o lado de cá, o princípio da eficiência, que, sem dúvida alguma, tem uma amplitude bem maior que aquela expressa no art. 37, caput, da CF/1988.
Do contrário, o Direito Processual deixará de ser um grande e importante componente na construção histórica do Direito e passará a ser apenas uma estória contada nas salas de aula para ilustrar o dever ser que, em verdade, nunca é nem será...
Particularmente, conforme já aduzido no início deste texto, entendo que a questão da contagem dos prazos processuais no Sistema dos Juizados Especiais é muito simples e não exige qualquer esforço interpretativo. Mas parece que, na prática, essa simplicidade não é a mesma que orienta tal sistema (art. 2º da Lei nº 9.099/1995), ao menos na visão divulgada pelo FONAJE.
Neste ponto, merece análise o argumento compartilhado durante o XXXIX Encontro do FONAJE para afastar a aplicação do novo Código de Processo Civil e repristinar a regra de contagem de prazos do CPC/1973. Conforme já citado anteriormente, na Nota Técnica nº 01/2016, consignou-se que, em razão da "flagrante incompatibilidade com os critérios informadores da Lei nº 9.099/1995", o art. 219 do CPC/2015 seria inaplicável.
Colhe-se do art. 2º da Lei nº 9.099/1995 que os critérios informadores aludidos acima são: (I) oralidade; (II) simplicidade; (III) informalidade; (IV) economia processual; e (V) celeridade.
Os três primeiros princípios, ou critérios (oralidade, simplicidade e informalidade) têm íntima relação e podem ser compreendidos em conjunto: ao se prestigiar a fala em detrimento da escrita e, com isso, afastar a elevada carga hermética da linguagem jurídica (juridiquês), busca-se desburocratizar os mecanismos de resolução judicial das controvérsias e permitir maior proximidade e participação direta pelos envolvidos, com maior desapego às formalidades processuais.
O princípio da economia processual "preconiza o máximo de resultado na atuação do direito com o mínimo emprego possível de atividades processuais", na precisa lição de Cintra, Grinover e Dinamarco (2008, p. 79).
Celeridade, por sua vez, é uma qualidade, uma característica daquilo que é célere, ágil, rápido, veloz. Para Maria Helena Diniz (2005, p. 654), celeridade processual é o "princípio pelo qual o processo deve organizar-se de forma a chegar rapidamente ao seu termo". E é exatamente por isso que, particularmente, enxergo tal princípio com bastante ceticismo. Em verdade, entendo mesmo que houve uma tradução mal feita da linguagem constitucional para a infraconstitucional de duração razoável (art. 5º, LXXVIII, e art. 98, I, da CF/1988) para celeridade (art. 2º da Lei nº 9.099/1995).
Agora que já se tem uma pequena noção do significado dos princípios/critérios informadores da Lei nº 9.099/1995, abstraindo-se a aplicação do art. 219 do CPC/2015 ao seu procedimento, indaga-se: por que haveria flagrante incompatibilidade? Em havendo tal flagrante incompatibilidade, qual a fonte da regra que estabelece a manutenção da contagem de prazos processuais em dias corridos?
A autoridade da afirmação no sentido da incompatibilidade provém muito mais de quem a faz do que de seus fundamentos. A uma porque os prazos das partes (nas raras hipóteses em que há definição nas leis que compõem o Sistema dos Juizados Especiais) são quase todos, senão todos, peremptórios, ou seja, quando não observados acarretam a preclusão temporal. A duas porque os prazos que realmente prejudicam a solução dos litígios em tempo razoável são impróprios e dirigidos ao Juízo da demanda (leia-se: magistrados e serviços auxiliares). Logo, a culpa pelo descumprimento dos critérios informadores previstos no art. 2º da Lei nº 9.099/1995 é do tempo morto dos procedimentos; e certamente o assassino não é, nem poderia ser, o novo Código de Processo Civil.
O segundo aspecto problemático decorrente da solução apresentada pelos enunciados 165 e 13 do FONAJE refere-se ao preenchimento da lacuna normativa criada com o afastamento da regra do art. 219 do CPC/2015. Se era basicamente o art. 178 do CPC/1973 que fundamentava a contagem de prazos processuais de forma contínua, poderiam os enunciados do FONAJE repristinar o dispositivo revogado? Reflitam!...
Se não importam os arts. 219 e 1.046, § 2º, do CPC/2015, não deveria se observar ao menos o art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/1942, com a redação dada pela Lei nº 12.376/2010), que traz normas de sobredireito?
Com essas provocações, convido a todos à reflexão e encerro advertindo que, para fins de atuação prática, apesar do teor do enunciado nº 175 do FONAJEF, é menos inseguro ficar com a corrente capitaneada pelo FONAJE, segundo a qual no Sistema dos Juizados Especiais não se aplica a regra do art. 219 do CPC/2015, que estabelece a contagem de prazos processuais em dias úteis. No referido sistema, a contagem deve ser realizada em dias corridos, tal como ocorria no revogado CPC/1973. Ultratividade? Acredito que não. Repristinação? Menos ainda. Fundamento: (flagrante) incompatibilidade com os critérios, ou princípios, informadores dos Juizados Especiais (art. 2º da Lei nº 9.099/1995). Lembrando, ainda, que os enunciados do FONAJE e do FONAJEF têm força meramente persuasiva, de modo que podemos encontrar nos Juizados Especiais Federais quem afaste o art. 219 do CPC/2015; e, nos Juizados Especiais Cíveis e da Fazenda Pública, quem o aplique sem maiores restrições, como, inclusive, ocorre no âmbito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (veja a notícia aqui).
Em provas de concursos públicos e exames da Ordem dos Advogados do Brasil, imagino que ao menos por enquanto a controvérsia não deve ser abordada em questões fechadas, de primeira fase. Por outro lado, em questões discursivas é importante problematizar a temática, apontando as posições diferentes e indicar, fundamentadamente, qual aquela com maior grau de juridicidade na sua visão.
Para fins de aprofundamento acadêmico e crítico, decida por si só, mas não deixe de fundamentar (art. 93, IX, da CF/1988 e art. 489, § 1º, do CPC/2015). Vai que gera alguma nulidade...
Grande abraço e ótimos estudos!
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REFERÊNCIAS:
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. I.
TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais: comentários à Lei 10.259, de 10.07.2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. I.
TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais: comentários à Lei 10.259, de 10.07.2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.